terça-feira, 23 de outubro de 2012

Texto vencedor do Concurso Literário Terça Crônica

Tarja Preta

Jamile Guerra

A capa do Correio Braziliense estampa na manchete o aumento significativo da venda de psicotrópicos na capital federal. Leio aquilo e me sinto feliz. Pelo menos nisso, não estou sozinha. Lembro-me do Programa Tarja Preta, apresentado pelo Selton Mello. Ele entrevistava figuras do meio artístico e, no fim, sempre disparava a mesma pergunta: toma algum tarja preta? Guardei na memória a resposta do Marco Nanini: claro, são os melhores.

Não sei se são exatamente os melhores, adoro outras categorias de remédio, então escolher um preferido é pedir para uma mãe dizer de que filho mais gosta. Meus “controlados” tornam os dias melhores, mas também não deixam de ser um incômodo, sobretudo não hora de compra-los. Sou neurótica, paranoica e ansiosa. Desconfio que nada existe naqueles comprimidinhos receitados pelo médico, tudo placebo. Ir à farmácia, apresentar uma receita azul e, claro, achar que todos olham para você e pensam que é louca, isso sim é o que realmente importa para efeitos de terapia.

E lá vou eu em mais uma saga na busca de meus inseparáveis companheiros. Suo frio. Entro na farmácia e faço uma espécie de reconhecimento de território. O lugar está vazio, apenas um senhor já bem idoso passeia por entre as prateleiras. Esbarro com ele a caminho do balcão e tenho certeza de que sabe de tudo. Sigo em frente e procuro por um farmacêutico que pareça discreto. Não sei como definir uma cara de discrição, vou no “feeling”. Escolho um jovem rapaz que atende no canto direito do balcão, tiro a receita da bolsa cuidadosamente e apontando para o nome do remédio digo:

- É esse aqui!

Ele vai para o estoque e parece ficar por lá uma eternidade. Outras pessoas chegam à farmácia e eu pouso os braços sobre a receita na esperança de que ninguém a perceba. Sinto que estou sendo observada. Olho para os lados e noto que o senhor me espiona de canto de olho. Deve estar pensando “Ah, essa juventude está mesmo perdida”. Sinto uma enorme vontade de dizer que ele não tem nada a ver com a minha vida, que estou me cuidando, que foi o médico que me receitou aquele maldito remédio e aff. Conto até dez, respiro fundo. Autocontrole também faz parte da terapia.

Agora o local reúne uns cinco ou seis clientes. O farmacêutico volta de mãos vazias e grita para o seu colega do outro lado da farmácia: Lexotan 06 mg, não estou encontrando. Tento disfarçar meu desespero, me afasto do balcão e faço de conta que aquele remédio não me pertence. Invento qualquer coisa para me distrair e, de repente, me pego lendo a embalagem de uma fralda geriátrica. Ok, não estou ajudando muito.

O farmacêutico desgraçado-sem-vergonha-indiscreto-de-uma-figa volta com a porra da caixa de remédios na mão. Aproximo-me com um olhar fuzilante. Peça um analgésico, um antibiótico ou que o valha e você os terá tranquilamente sem nenhum problema. Agora experimente pedi um tarja preta ou uma pomada para hemorroida e veja o que acontece. Deve ser uma piada interna desses desgraçados da farmácia. Mas piada interna com o que há de interno em nós é sacanagem.

Começa a parte burocrática. Tenho que preencher a minha vinda inteira naquela receita imunda. Olho para o lado pela milésima vez. E advinha quem está ali?  O tal senhorzinho, claro, sempre ele. Aposto que se posicionou junto a mim por puro sadismo. Queria me torturar aquele velho desgraçado. Preenchi às pressas meus dados, enquanto aquela figura senil sorria maliciosamente. E antes mesmo que eu terminasse o que tinha para fazer, o velho tratou de acelerar o passo – que antes se mostrava lento – para chegar ao caixa primeiro do que eu. Uma provacaçãozinha barata, típica desse tipo de gente que se diverte com a desgraça alheia.

Termino de preencher a receita. Mas antes de me direcionar ao caixa, detenho-me em frente à prateleira de preservativos, olhando fixamente para aquele senhor inconveniente. Pego várias camisinhas. Jontex, Prudence, Olla. Todas de tamanho super-ultra-mega-plus-grande-e-estratosférico. Aproveito para levar também uns tubinhos de lubrificante. KY. Nas versões tradicional e warming.

Os olhos do velho saltam. De repente, me transformo diante dele na encarnação da luxúria. Safada? Devassa? Pervertida? Não me importo. Tudo, menos louca.    


Sobre a autora
Boêmia compulsiva e redatora publicitária nas horas (tão) vagas. Herdou dos progenitores seus piores vícios. Da mãe, o gosto pelo whisky. Do pai, o Botafogo. Casou-se com um revisor que teima em corrigir seus muitos erros, não exatamente os de ortografia.

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